As flores do mal, cheiro de ‘modernidade’

20 abr

Página de capa da edição de 1857 de 'Fleurs du Mal', prova corrigida por Baudelaire

A Música

A música p’ra mim tem seduções de oceano!
Quantas vezes procuro navegar,
Sobre um dorso brumoso, a vela a todo o pano,
Minha pálida estrela a demandar!

O peito saliente, os pulmões distendidos
Como o rijo velame d’um navio,
Intento desvendar os reinos escondidos
Sob o manto da noite escuro e frio;

Sinto vibrar em mim todas as comoções
D’um navio que sulca o vasto mar;
Chuvas temporais, ciclones, convulsões

Conseguem a minh’alma acalentar.
— Mas quando reina a paz, quando a bonança impera,
Que desespero horrivel me exaspera!

Charles Baudelaire, “As Flores do Mal”

As flores do mal é livro do poeta francês Charles Baudelaire, conhecido como o ‘poeta da modernidade’. A seguir, considerações sobre o livro por Hugo Friedrich.

“Em muitas declarações análogas, fala-se do poeta da ‘modernidade’. Esta afirmação tem uma justificativa de todo imediata, pois Baudelaire é um dos criadores desta palavra. Ele a emprega em 1859, desculpando-se por sua novidade, mas necessita dela para expressar o particular do artista moderno: a capacidade de ver no deserto da metrópole não só a decadência do homem, mas também de pressentir uma beleza misteriosa, não descoberta até então” (p. 35).

Les Fleurs du Mal (1857) não são uma lírica de confissão, um diário de situações particulares, por mais que haja penetrado nelas o sofrimento de um homem solitário, infeliz e doente” (p. 36).

“Quase todas as poesias de Les Fleurs du Mal falam a partir do eu. Baudelaire é um homem completamente curvado sobre si mesmo. Todavia este homem voltado para si mesmo, quando compõe poesias, mal olha para seu eu empírico. Ele fala em seus versos de si mesmo, na medida em que se sabe vítima da modernidade. Esta pesa sobre ele como excomunhão. Baudelaire disse, com bastante frequência, que seu sofrimento não era apenas seu. É significativo que restos do conteúdo de sua vida pessoal, quando ainda permanecem aderentes às suas poesias, só estejam expressos de maneira imprecisa. Ele nunca teria escrito versos como, por exemplo, os de Victor Hugo sobre a morte de uma criança. Com uma solidez metódica e tenaz mede em si mesmo todas as fases que surgem sob a coação da modernidade: a angústia, a impossibilidade de evasão, o ruir frente à idealidade ardentemente querida, mas que se recolhe ao vazio” (p. 38).

“Com a temática concentrada de sua poesia, Baudelaire cumpre um propósito de não entregar à ‘embriaguez do coração’. Esta pode comparecer na poesia, mas não se trata de poesia propriamente dita, e sim de mero material poético. O ato que conduz à poesia pura chama-se trabalho, construção sistemática de uma arquitetura, operação com os impulsos da língua. Baudelaire chamou várias vezes a atenção para o fato de que Les Fleurs du Mal não querem ser um simples álbum, mas um todo, com começo, desenvolvimento articulado e fim. Isto é exato. De acordo com o conteúdo, elas oferecem desespero, paralisia, voo febril ao irreal, desejo de morte, mórbidos jogos de excitação. Mas estes conteúdos negativos podem ainda estar envoltos por uma composição mediada” (p. 39).

“Mas o conceito de modernidade de Baudelaire tem ainda outro aspecto. É dissonante, faz do negativo, ao mesmo tempo, algo fascinador. O mísero, o decadente, o mau, o noturno, o artificial, oferecem matérias estimulantes que querem ser apreendidas poeticamente. Contêm mistérios que guiam a poesia a novos caminhos” (p. 43).

“ ‘Para se penetrar a alma de um poeta, tem-se de procurar aquelas palavras que aparecem mais amiúde em sua obra. A palavra delata qual é a sua obsessão’. Estas frases de Baudelaire contêm um princípio excelente de interpretação, que se pode aplicar ao próprio Baudelaire. A severidade de seu mundo espiritual, a persistência de seus temas, poucos mas intensos, permitem deduzir os pontos centrais pelas palavras repetidas amiúde. Trata-se de palavras-chave que, sem qualquer dificuldade, se podem distinguir em dois grupos opostos. De um lado estão: obscuridade, abismo, angústia, desolação, deserto, prisão, frio, negro, pútrido… do outro: ímpeto, azul, céu, ideal, luz, pureza… esta antítese exacerbada passa através de quase toda sua poesia. Muitas vezes, comprime-se no espaço mais conciso e torna-se dissonância lexical, como ‘grandeza suja’, ‘caído e encantador’, ‘horror sedutor’, ‘negro e luminoso’ “ (p. 45/46).

“Do jogo romântico, Baudelaire fez uma seriedade não romântica; com as ideias marginais de seus mestres, construiu um edifício de pensamento, cuja fachada lhes voltou as costas. Por isto, pode-se chamar a lírica de seus herdeiros de ‘Romantismo desromantizado’ “ (p. 58).

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna, Livraria duas cidades, São Paulo, 2ª edição, 1991

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