Breve reflexão sobre um poema de Manuel Bandeira

19 jul

Manuel Bandeira, por Cândido Portinari

Por: Rosely Zenker (www.twitter.com/roselyzenker)

O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira, Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1947

Este poema de Manuel Bandeira relata uma cena cotidiana, em que qualquer pessoa poderia se deparar com situação semelhante. O autor utiliza uma linguagem coloquial e acessível, recorrendo à simplicidade, característica tão marcante em sua obra.

Há uma surpresa preparada para o leitor… o texto se inicia com refinada transitoriedade, talvez se perceba até mesmo o silêncio de uma rua vazia, ecoando alguns movimentos solitários e pontuais. Porém, há perplexidade quando se anuncia que o bicho descrito, que poderia se passar despercebido, na realidade é um homem.

Como se pode observar, este poema foi escrito na cidade do Rio de Janeiro, dois dias após o Natal, portanto a cena se teria realizado no eco das festas comemorativas e de fartura. O personagem estaria buscando restos das alegrias de outras pessoas, evidenciando aí as desigualdades sociais de uma cidade urbana.

O poema intensifica a dinâmica da fome: não examinar nem cheirar demonstra ações imediatas e vorazes, próprias de um ser irracional, a que se reduz um homem diante a calamidade. Estar rebaixado além do cão, do gato e do rato introduz o impacto emocional do expectador, que impotente observa. Impotente, porém não passivo, pois denuncia através da palavra as condições de sofrimento e desumanidade da miséria. Ver uma pessoa na rua numa grande cidade revirando o lixo talvez não causasse tamanha comoção, pois que o hábito de conviver com a pobreza banaliza-a. Manuel Bandeira a coloca no seu devido patamar de sensação: a da repúdia, a da lamentação, pois este olhar verdadeiro diante um homem em necessidades extremas é o de identificação, de empatia.

(Texto sobre o poema “O bicho”, escrito em junho de 1991)

2 Respostas to “Breve reflexão sobre um poema de Manuel Bandeira”

  1. Mara 17 de maio de 2011 às 20:17 #

    Excelente!!!!
    Análise perfeita.
    Parece absurdo ver que na década de 40 catar comida no lixo já fosse uma realidade das grandes cidades brasileiras e mais absurdo ainda que mais de meio século depois esta realidade só aumentou e piorou.

  2. Bianca Santos 25 de junho de 2013 às 18:06 #

    Adorei!!!!!!!!!! Me ajudou muito. Agora com a mente um pouco mais enriquecida, posso fazer meu trabalho sem tantas dificuldades.

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